Imagine trabalhar em Tóquio sem sair de Manila. Não, não é ficção científica – é o que está acontecendo agora mesmo em um prédio comercial nas Filipinas, onde jovens de headset controlam robôs que reabastece prateleiras de lojas de conveniência a milhares de quilômetros de distância. Parece loucura? Prepare-se, porque essa história revela muito sobre o futuro do trabalho global.
E antes que você pergunte: sim, isso levanta questões sérias sobre quem está realmente ganhando nessa equação.
O Trabalho Mais Estranho que Você Vai Conhecer Hoje
Dentro de um escritório em Manila, 60 pessoas fazem algo que parece saído de um filme de ficção: elas “pilotam” robôs no Japão. Seus olhos grudados em telas, monitorando máquinas de inteligência artificial que colocam bebidas e produtos nas prateleiras das FamilyMart e Lawson – duas das maiores redes de conveniência japonesas.
A rotina é tranquila… até que não é. Quando um robô deixa cair uma lata de refrigerante, alguém coloca um óculos de realidade virtual, pega dois joysticks e, num piscar de olhos, está controlando braços mecânicos do outro lado do mundo para recuperar aquela latinha rebelde.
Bizarro? Totalmente. Mas também é genial – e perturbador ao mesmo tempo.
Por Que o Japão Precisa de Robôs Controlados por Filipinos?
Aqui está o ponto crucial: o Japão está envelhecendo rápido. A população está diminuindo, e encontrar gente disposta a trabalhar reabastecendo prateleiras é cada vez mais difícil. E caro. Muito caro.
A solução? Terceirizar o trabalho físico. Não mandar as pessoas para lá (o Japão é notoriamente cauteloso com imigração), mas trazer o trabalho para onde a mão de obra é mais acessível.
A startup Telexistence criou robôs de IA que rodam em plataformas da Nvidia e Microsoft. Desde 2022, mais de 300 lojas já usam essas máquinas. A Astro Robotics, com sede em Manila, fornece os “pilotos” que supervisionam tudo remotamente, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
É a globalização levada ao extremo: trabalho físico terceirizado através de avatares robóticos.
O Lado Brilhante: Empregos de Tecnologia em Expansão
Vamos ser justos: há um lado positivo inegável aqui. As Filipinas, já conhecidas como hub global de call centers, agora estão surfando na onda da IA e da automação. Enquanto trabalhadores em países mais ricos enfrentam demissões tecnológicas, os filipinos estão sendo contratados para:
- Teleoperar robôs industriais
- Dirigir veículos autônomos remotamente
- Colaborar com sistemas de IA
- Construir “agentes de IA” que executam tarefas de forma autônoma
Esses empregos exigem mais habilidades técnicas do que moderação de conteúdo ou etiquetagem de dados – trabalhos de IA mais básicos geralmente associados a países em desenvolvimento. São engenheiros de computação, graduados em ciência da computação, profissionais qualificados.
E diferente de outras indústrias que estão encolhendo, essa está crescendo. O mercado de agentes de IA deve explodir oito vezes até 2030, chegando a US$ 43 bilhões. O mercado de robôs industriais vai quase dobrar.
Comparando com o Passado: A Nova Revolução Industrial?
Pense assim: nas revoluções industriais anteriores, as fábricas iam até onde estava a mão de obra barata. Hoje, a mão de obra fica onde está, mas controla as máquinas que estão em qualquer lugar do mundo.
É como se você pudesse trabalhar numa mina na Austrália, numa fazenda nos EUA ou numa loja no Japão – tudo sem sair da sua cidade. Teoricamente, isso democratiza oportunidades globais.
Mas será que é tão simples assim?
O Lado Sombrio: Quando Você Treina Seu Substituto
Aqui está onde a história fica desconfortável. Cada movimento que esses teleoperadores fazem está sendo registrado. Cada correção manual, cada ajuste fino quando o robô falha – tudo vira dados de treinamento.
A Telexistence já reuniu uma “grande quantidade de dados exclusivos de teleoperação incorporada” desses trabalhadores humanos. E para quê? Para treinar robôs totalmente autônomos.
Em junho de 2025, a empresa anunciou parceria com a Physical Intelligence (startup de São Francisco) para desenvolver “inteligência física” semelhante à humana nos robôs. O objetivo declarado no comunicado? “Transferir essas tarefas manuais de teleoperação para operações totalmente autônomas.”
Tradução: os trabalhadores filipinos estão, literalmente, ensinando as máquinas a não precisarem mais deles.
A Ironia Cruel da Automação Terceirizada
Imagine a situação: você é contratado para fazer um trabalho específico. Você é bom nisso. Mas cada dia que trabalha, você está tornando sua própria posição mais obsoleta. É como cavar o próprio túmulo, só que recebendo um salário por isso.
Lionel Robert, professor de robótica na Universidade de Michigan, resume com uma frase dura: “Eles deixaram de perder o emprego para a máquina e passaram a ser basicamente observadores da máquina fazendo o trabalho. Vocês são como substitutos do robô.”
Isso pode ser ainda pior para a autoestima do que simplesmente perder o emprego para a automação, ele argumenta. Você não foi substituído – você está lá, assistindo, corrigindo erros ocasionais, sabendo que seu papel é cada vez menor.
A Matemática Brutal: Quem Realmente Lucra?
Vamos falar de números, porque eles contam uma história reveladora.
Um teleoperador na Astro Robotics ganha entre US$ 250 e US$ 315 por mês. Para contexto, isso é aproximadamente o mesmo que um atendente de call center nas Filipinas.
Nos EUA, desenvolver um sistema de agente de IA pode custar de US$ 10.000 (chatbot básico) a US$ 300.000 (sistema empresarial complexo). Nas Filipinas? Uma fração disso – especialmente quando os contratados não recebem assistência médica ou benefícios de aposentadoria.
Um engenheiro de TI filipino que trabalha para uma consultoria americana recebe US$ 874 por mês – cerca de 30% menos que o salário mínimo americano para tempo integral. Ele ajudou a desenvolver um agente de help desk que… reduziu drasticamente sua própria carga de trabalho.
“Lidamos com apenas seis tarefas por dia agora”, ele conta. “Toda vez que sou chamado para uma reunião, tenho medo de ouvir que não sou mais necessário.”
O Duplo Golpe Econômico
Robert, o professor de Michigan, chama isso de “duplo impacto econômico” para países como os EUA. A expectativa era que automação eliminasse empregos de baixa qualificação, mas criasse demanda por trabalhadores qualificados em tecnologia – com salários altos.
Mas ao terceirizar esses empregos técnicos para países onde se paga muito menos? Você perde dos dois lados: automação e competição global por salários deprimidos.
As empresas maximizam lucros. Os trabalhadores filipinos ganham mais que localmente, mas muito menos que colegas em países desenvolvidos. E trabalhadores em economias avançadas veem oportunidades evaporarem.
É uma corrida para o fundo do poço em busca de mão de obra barata, nas palavras de Jose Mari Lanuza, do Sigla Research Center em Manila.
Os Custos Ocultos: Enjoo Virtual e Pressão Extrema
Tem mais. O trabalho não é apenas psicologicamente desgastante – é fisicamente difícil também.
Um trabalhador da Astro Robotics descreve enjoo cibernético constante: tontura, estrabismo, náusea. É um tipo de enjoo de movimento associado à realidade virtual. Em um turno de oito horas, ele coloca o headset VR cerca de 50 vezes, ficando até cinco minutos em cada sessão para corrigir erros do robô.
“Imagine o teletransporte, a desconexão repentina do ambiente, a altitude — tudo pode causar acidentes”, explica Rowel Atienza, professor que estuda os efeitos da ciberdose.
E há pressão intensa. Quando algo dá errado num robô a 3.000 km de distância, você precisa resolver agora. Clientes estão esperando. A loja precisa funcionar. E enquanto você corrige um erro, torce para que outro robô não falhe ao mesmo tempo.
Minha Opinião: Livre Mercado ou Exploração Sofisticada?
Aqui está uma pergunta incômoda: isso é progresso ou apenas uma forma mais elaborada de arbitragem salarial?
De um lado, temos inovação genuína. Empresas resolvendo problemas reais (escassez de mão de obra no Japão) através de tecnologia. Criando oportunidades de emprego em lugares onde elas são necessárias. Permitindo que trabalhadores qualificados nas Filipinas acessem mercados globais sem emigrar.
Num mercado verdadeiramente livre, essa seria uma situação win-win: empresas reduzem custos, trabalhadores filipinos ganham acima da média local, consumidores japoneses têm lojas abastecidas 24/7.
Mas há algo profundamente problemático quando o “livre mercado” significa:
- Pagar 30% do salário mínimo americano por trabalho equivalente
- Sem benefícios, sem segurança no emprego
- Usar trabalhadores para treinar sua própria substituição
- Criar empregos que deliberadamente têm data de validade
Isso não é competição justa – é aproveitar disparidades regulatórias e econômicas globais. A pergunta não é se as empresas podem fazer isso. Obviamente podem, e estão fazendo. A questão é: deveria haver algum tipo de padrão mínimo global para trabalho remoto de alto valor?
Porque se a resposta é “deixa o mercado decidir”, estamos vendo a decisão: corrida para o fundo, sempre.
As Filipinas na Encruzilhada: Construir Local ou Servir Global?
Nem todos estão confortáveis com esse papel. Marc Escobar, jovem de 22 anos, recebeu oferta de US$ 1.500 mensais da Anthropic (criadora do Claude) para trabalhar como engenheiro de IA. Salário alto para um recém-formado nas Filipinas.
Ele recusou.
Escobar trabalha na Sofi AI, startup filipina que paga metade disso. Por quê? “Não posso fazer isso porque quero ver nossos esforços locais, nossa empresa, prosperar”, ele explica. “Quero mostrar que também podemos expandir com IA nas Filipinas.”
Xian Guevarra, do Sindicato dos Profissionais de Computação, é direto: “Os filipinos estão desenvolvendo as ferramentas que poderão ser usadas para substituí-los no futuro. A tecnologia deve aumentar seu trabalho e eficiência, não ser algo para maximizar lucros no exterior.”
Comparação Inevitável: Índia vs Filipinas 2.0?
Isso já aconteceu antes. A Índia se tornou o hub global de TI nas décadas de 1990-2000. Começou com call centers e codificação básica. Com o tempo, desenvolveu expertise local, criou empresas próprias (Infosys, Wipro, TCS) e subiu na cadeia de valor.
As Filipinas poderiam seguir caminho similar – construir indústria de IA e robótica localmente, não apenas servir empresas estrangeiras. Mas isso exige visão de longo prazo, investimento em educação, ecossistema de startups robusto.
A tentação de aceitar dólares estrangeiros agora, mesmo que temporários, é forte demais.
O Futuro Híbrido (Ou: Humanos Não Vão Desaparecer… Ainda)
Há uma perspectiva menos apocalíptica. Lionel Robert argumenta que automação completa talvez nunca aconteça. “Os robôs e a IA vão tirar todos os empregos dos humanos? A resposta é não — porque os humanos são muito úteis. O futuro é uma força de trabalho híbrida.”
O Fórum Econômico Mundial pesquisou 1.000 empregadores globais. Eles esperam que empregos exclusivamente humanos diminuam, sendo substituídos por trabalho em colaboração com máquinas. Mas 41% também preveem cortes quando habilidades se tornarem obsoletas.
Então, sim, haverá trabalho humano. A questão é: que tipo de trabalho, para quem, e em que condições?
Os 4% que Fazem Diferença
Voltemos aos robôs nas lojas japonesas. Eles funcionam autonomamente a maior parte do tempo. Apenas 4% das vezes cometem erros que exigem intervenção humana.
Parece pouco, certo? Mas pense: em 300 lojas operando 24/7, esses 4% geram trabalho constante. Por enquanto.
À medida que a IA melhora – alimentada por dados de teleoperadores humanos – essa taxa vai cair. 4% vira 3%. Depois 2%. Depois 1%.
Em algum momento, manter humanos monitorando remotamente deixa de fazer sentido econômico. Mais barato ter um técnico local que visite ocasionalmente quando algo quebra.
E aí? Para onde vão os pilotos de robô?
Perguntas Desconfortáveis que Ninguém Está Fazendo
Essa história toda levanta questões que vão muito além de robôs em lojas de conveniência:
1. Globalização de trabalho físico: Se podemos terceirizar reabastecimento de prateleiras, que outros trabalhos físicos se tornam “remotos”? Construção? Cirurgia? Manufatura?
2. Soberania tecnológica: Países em desenvolvimento serão eternamente fornecedores de mão de obra barata para tecnologias desenvolvidas em outros lugares? Ou podem criar indústrias próprias?
3. Padrões trabalhistas globais: Quando trabalho remoto cruza fronteiras, quais leis se aplicam? Do país do trabalhador, da empresa, ou onde o robô está?
4. A ilusão de oportunidade: Estamos criando escadas econômicas ou apenas diferentes tipos de trabalho precário?
5. Treinamento de IA ético: Deveria haver transparência quando trabalhadores estão treinando seu próprio substituto? Alguma compensação quando a IA eventualmente os substituir?
A Escolha que Ninguém Está Discutindo
Aqui está o ponto central que todo mundo está evitando: isso não precisava ser assim.
A tecnologia de teleoperação robótica é neutra. Ela poderia ser usada para:
Opção A (realidade atual): Maximizar lucros corporativos através de arbitragem salarial internacional, enquanto treina IA para eventualmente eliminar esses empregos.
Opção B (alternativa ignorada): Criar empregos sustentáveis de longo prazo, compartilhar ganhos de produtividade com trabalhadores, investir em ecossistemas tecnológicos locais, estabelecer padrões para trabalho remoto internacional.
Escolhemos A porque é mais lucrativo a curto prazo. Não por inevitabilidade tecnológica, mas por escolhas econômicas deliberadas.
Num mercado verdadeiramente livre, haveria competição não apenas por custos mais baixos, mas por melhores modelos de negócio. Empresas que tratam trabalhadores melhor e pensam longo prazo poderiam superar aquelas focadas só em corte de custos.
Mas isso exigiria consumidores, investidores e sociedades valorizando algo além do preço mais baixo.
Conclusão: Futuro ou Apenas Presente Disfarçado?
Filipinos controlando robôs no Japão parece futurista. Mas talvez seja apenas a versão high-tech de algo muito antigo: mão de obra barata sendo usada por quem pode pagar, com tecnologia facilitando a exploração em escala global.
A diferença? Antigamente, você precisava trazer trabalhadores para onde estava o trabalho (com todas as complicações de imigração, direitos, integração social). Agora, você traz o trabalho até onde estão os trabalhadores mais baratos – e pode dispensá-los remotamente quando a automação estiver pronta.
Será que em 2030 olharemos para trás e veremos isso como uma era de transição – um momento estranho onde humanos e máquinas trabalhavam juntos antes da automação completa? Ou descobriremos que sempre haverá aqueles 4% de erros que tornam humanos indispensáveis?
Uma coisa é certa: esses jovens em Manila, com seus headsets de VR e joysticks, estão vivendo o futuro do trabalho agora. A questão é se esse futuro é algo pelo qual lutar – ou contra o qual lutar.
E você? Se tivesse a chance de ganhar em dólares controlando robôs do outro lado do mundo, sabendo que está treinando sua própria substituição, aceitaria? Onde você traça a linha entre oportunidade e exploração?



